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26 de Abril de 2024

O Direito Fundamental à Liberdade de Consciência no Direito Brasileiro: O Direito à Não Imposições de Valores Morais pelo Estado

Publicado por FM e V Advocacia
há 14 anos
Por Felipe Augusto Fonseca Vianna*

Os direitos de defesa caracterizam-se por impor ao Estado um dever de absten (ou à liberdade) ção, um dever de não-influência, de não intromissão no espaço de autodeterminação do indivíduo COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 289; ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993 p. 189 e ss.; SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 6 ed. rev. atual. e amp. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 196 e ss.; CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. 5 ed. Coimbra: Almedina, 1992, p. 552). Tais direitos correspondem, primordialmente, aos direitos fundamentais de primeira geração, tendo surgido com a Revolução Francesa e se traduzindo em postulados de abstenção dos governantes, criando obrigação de não fazer, não intervir em certos aspectos da vida pessoal de cada indivíduo.

Ainda que tenham sua gênese como uma reação contra o Absolutismo, mesmo uma democracia necessita de direitos de defesa, na medida em que também a democracia não deixa de ser exercício de poder de homens sobre homens, encontrando-se exposta a abusos de poder, seja por parte do Estado, seja por particulares.

Acima de tudo, os direitos fundamentais -na condição de direitos de defesa -objetivam a limitação do poder estatal, assegurando ao indivíduo uma esfera de liberdade e outorgando-lhe um direito subjetivo que lhe permita evitar interferências indevidas no âmbito de proteção do direito fundamental ou mesmo a eliminação de agressões que esteja sofrendo em sua esfera de autonomia pessoal. .

Os di (SARLET, 2006, p. 196) reitos de defesa, então, servem como normas de competência negativa contra o Estado, vedando interferências estatais no âmbito de liberdade dos indivíduos, protegendo bens jurídicos contra ações que os afetem e evitando que se eliminem certas posições jurídicas. Na Constituição brasileira, esses direitos de defesa estão em grande medida contidos no art. . Em quase todos os seus incisos é possível se ver a preocupação com o direito de liberdade do cidadão. Isso se torna bem claro logo nos primeiros incisos.

...importa consignar que os direitos individuais e coletivos tais com[...] o arrolados no art. 5º e em seus 77 incisos, correspondem, em princípio, aos clássicos direitos de liberdade, exercendo primordialmente a função de direitos de defesa, ainda que tenham sido enriquecidos por novas liberdades e garantias. .

Para (SARLET, 2006, p. 201) o estudo ora realizado, merecerá importância ímpar o inciso VI do art. 5ºº daConstituição Brasileiraa.

Não é objetivo deste trabalho discutir as bases filosóficas da liberdade, seus aspectos internos e externos, seus sentidos negativos e positivos e demais aspectos laterais da liberdade. O que importa para o estudo ora feito é que a liberdade desde muito tempo é vista como elemento ínsito ao direito. Pimenta Bueno, há mais de um século, dizia:

A liberdade não é, pois, exceção, é sim a regra geral, o princípio absoluto, o Direito Positivo; a proibição, a restrição, isso sim é que são as exceções, e que por isso mesmo precisam ser provadas, achar-se expressamente pronunciadas em lei, e não por modo duvidoso, sim formal, positivo; tudo o mais é sofisma. Em dúvida, prevalece a liberdade, porque é o direito, que não se restringe por suposições ou arbítrio, que vigora, porque é facultas ejus, quod facere licet, nisi quid jure prohibet. (PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça/Serviço de Documentação, 19581958, p. 43-44).

Pode liberdade de consciência ser conceituada como "a liberdade do indivíduo de adotar a atitude intelectual de sua escolha: quer um pensamento íntimo, quer seja a tomada de posição pública..." (AFONSO DA SILVA, 1995, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 235), ou, em outras palavras, a "liberdade de pensar e dizer o que crê ser verdadeiro" (ROBERT, Jacques. Libertés publiques. Paris: Éditions Monchréstien, 1971, p. 302).

Tais liberdades de certo modo resumem a pr (liberdade de consciência e crença) ópria liberdade de pensamento em suas várias formas de expressão .(AFONSO DA SILVA, 1995, p. 235) Por isso são também chamadas de liberdade primária, sendo ponto de partida para todas as outras (COLLIARD, Claude-Albert. Libertés publiques. Paris: Dalloz,1972, p. 316). A liberdade de consciência constitui o núcleo básico de onde derivam as demais liberdades de pensamento (MELLO FILHO, José Celso. Constituição Federal Anotada. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 440).

A liberdade de consciência é direito conquistado há t (ou de pensamento) empos, estando desde sempre no foco das preocupações dos constitucionalistas e figurando como garantia em diversas declarações de direitos .[1] O princípio também é muito recorrente na jurisprudência européia[2] e as Constituições igualmente sobre ele não silenciaram[3].

A liberdade de consciência tem que ver com a faculdade de o indivíduo formular juízos e idéias sobre si mesmo e sobre o meio externo que o circunda. O Estado não pode interferir nessa esfera íntima do indivíduo, não lhe cabendo impor concepções filosóficas aos cidadãos (HERRERA, Miguel Garcia. La objeción de consciencia en materia de aborto. Vitoria-Gasteiz: Serviço de Publicaciones Del Goberno Vasco, 1991, p. 38). Deve, em verdade, propiciar meios efetivos de formação autônoma da consciência das pessoas (MENDES, et. al., 2009, p. 456).

Diante do que foi dito, verifica-se que não cabe a um Estado Democrático de Direito tutelar esses supostos "valores morais da sociedade média", ou condutas tidas pela maioria como "anormais".

Não é o caso de se enveredar aqui pela discussão acerca do que é normal, lembrando apenas que em épocas e lugares diferentes já foram ou são normais a tortura, a escravidão e a mutilação. O que cabe discutir aqui -e rejeitar -é a imposição autoritária da moral dominante à minoria, sobretudo quando a conduta desta não afeta terceiros. Em uma sociedade democrática e pluralista, deve-se reconhecer a legitimidade de identidades alternativas ao padrão majoritário. O estabelecimento de standards de moralidade já justificou, ao longo da história, variadas formas de exclusão social e política, valendo-se do discurso médico, religioso ou da repressão direta do poder. Não há razão para se reproduzir o erro. (BARROSO, Luis Roberto. Diferentes, mas iguais: O reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil. Disponível em: http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/diferentesmasiguais_171109.pdf, p. 16-17).

A imoralidade ou a reprovação ética de um comportamento não podem legitimar uma proibição jurídica se os pressupostos de uma convivência pacífica não forem lesionados .[4] Não se pode fundamentar a punibilidade de certas condutas, alegando tratar-se de uma ação imoral, pois um comportamento que se desenrola na esfera privada, com o consentimento dos envolvidos, não tem quaisquer conseqüências sociais e não pode ser objeto de proibições penais. O que se diz aqui vale também para ações consideradas abjetas segundo a moral contemporânea. Como bem frisou Mir Puig, não seria democrático um direito penal que aplicasse pena ou medidas de segurança para dar proteção a valores puramente morais, dos quais não dependa a subsistência ou o mínimo funcionamento da sociedade, sem que produzam notável perturbação social (MIR PUIG, Santiago. Introducción a Las Bases Del Derecho Penal. 2 ed. Buenos Aires: B de F , 2003, p. 135-136).

O Estado inimigo das minorias, protagonista da repressão e da imposição da moral dominante, como se fosse a única legítima, tem cedido passo, historicamente, ao Estado agente da tolerância e da inclusão social .

Deve-se sempre ter em m (BARROSO, 2009, p. 8) ente que o cidadão tem o direito à formação de sua própria moral, tendo o Estado a obrigação de respeitá-la. Deveria o Poder Público, garantir os meios para que os seus cidadãos desenvolvessem sua própria moral e não impor a moral da maioria sobre as minorias, ainda mais através do grave meio que é a norma penal.

... é de se consignar que um Estado democrático de Direito deve não apenas assegurar ao indivíduo o seu direito de escolha entre várias alternativas possíveis, como, igualmente, deve propiciar condições objetivas para que estas escolhas possam se concretizar. As pessoas devem ter o direito de desenvolver a sua personalidade e as instituições políticas e jurídicas devem promover esse desenvolvimento, e não dificultá-lo. (BARROSO, 2009, p. 18-19).

As pessoas devem ter liberdades individuais que não podem ser cerceadas pela maioria, pela imposição de sua própria moral (DWORKIN, Ronald. Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality. Cambridge: Harvard University Pre, 2000, p. 453 e ssss.).
A incriminação de condutas com o pretexto de se proteger a moralidade pública é execrável e dogmaticamente inviável.

El estad (a) o que pretende imponer una moral es inmoral, porque el mérito moral es producto de una elección libre frente a la posibilidad de elegir otra cosa: carece de mérito el que no pudo hacer algo diferente. Por esta razón el estado paternalista es inmoral, (b) En lugar de pretender imponer una moral, el estado ético debe reconocer un ámbito de libertad moral, posibilitando el mérito de sus habitantes, que surge cuando se dispone de la alternativa de lo inmoral: esta paradoja lleva a la certera afirmación de que el derecho es moral, precisamente porque es la posibilidad de lo inmoral, vinculada íntimamente a la distinción entre conciencia jurídica y conciencia moral. [...] (c) Como consecuencia de lo anterior, las penas no pueden caer sobre conductas que son, justamente, el ejercicio de la autonomía ética que el estado debe garantizar, sino sobre las que afectan el ejercicio de ésta. Conforme a esta decisión por el estado moral (y al consiguiente rechazo del estado paternalista inmoral), no puede haber delito que no reconozca como soporte fáctico un conflicto que afecte bienes jurídicos ajenos, entendidos como los elementos de que necesita disponer otro para autorrealizarse (ser lo que elija ser conforme a su conciencia). (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; SKOLAR, Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho Penal: Parte General. 2 ed. Buenos Aires: Ediar, 2002, p. 127)

O fato de que algumas pessoas possam se irritar com um comportamento não basta para a punição. Quando alguém faz uso de seu direito à liberdade de expressão com finalidade crítica, ou faz valer seu direito ao livre desenvolvimento da personalidade, assegurado pela Constituição, por meio de roupas ou cortes de cabelo especiais, ou de outro comportamento excêntrico, tal sempre desagradará a muitas pessoas. Mas isso não é razão para punir.

Deve-se renunciar, portanto, a fundamentações da punição na idoneidade de um comportamento para ofender a moral pública. Ou existe um perigo para a co-existência pacífica entre os cidadãos já sem a menção deste critério, ou este perigo inexiste. E neste segundo caso, a alegação da ofensa à moral pública não é mais suficiente para justificar a sanção jurídica (ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Trad. Luis Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 51-52).

Em resumo, pode-se dizer que a liberdade de consciência permite ao cidadão que forme seus próprios juízos, idéias ou opiniões sobre si mesmo, sobre o mundo e até mesmo sobre os outros seres que lhe circundam. Possibilita, pois, ao cidadão, a garantia de construir sua própria moral, impondo ao Estado e aos demais cidadãos o dever de respeitar este juízo de consciência edificado, seja não intervindo coercitivamente quando de sua formação -compelindo o indivíduo a adotar a moral imposta por outrem -, seja não tolhendo quaisquer direitos do ser humano em razão de seus pensamentos.



1 - Cfr., no Direito Internacional: a Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU (1948), art. 18; o "International Covenant on Civil and Political Rights" (1966), art. 18; Resolução 35 da ONU (1981), intitulada "Declaration on the Elimination of All Forms of Intolerance and of Discrimination Based on Religion or Belief" (arts. 1 e 6); "Vienna Declaration and action programme", adotada pela "World Conference on Human Rights", (1993); "Declaration of Principles on Tolerance" da UNESCO (1995); "Resolution of the General Assembly 52/122" (1998); "Geneva spiritual appeal" (1999); "Council of Europe", que firmou a "Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms" (1950), art. 9; Lei da União Européia, art. 13.

2 - Cfr. os casos: Campbell and Cosans v. UK (25 February 1982), Kokkinakis v. Greece (25 May 1993), Campbell and Cosans v. UK (25 February 1982), Chassagnou and others v. France (29 April 1999), Kokkinakis v. Greece (25 May 1993), Larissis and others v. Greece (24 February 1998), Manoussakis v. Greece (26 September 1996), Buscarini and others v. San Marino (18 February 1999), Sunday Times v. UK (26 April 1979) Kalaç v. Turkey (1 July 1997), Refah Partisi and others v. Turkey (13 February 2003), Leyla Sahin v Turkey (29 June 2004), Vivien Prais v. Council of the European Communities (27 October 1976, Case 130/76), p. ex.

3 - Ela pode ser encontrada nas Constituições da Bélgica , República Tcheca , Dinamarca , Alemanha , Estônia (arts. 11, 19 e 20) , Grécia , Espanha (arts. 15 e 16) , França , (arts. 67 e 70) Irlanda , I (4, 12a, 136 e 137) tália , Li (art. 40, 41 e 42) tuânia , (arts. 4 e 13) Luxemburgo (arts. 16 e 30) , Hungri (art. 1) a , Malta (art. 44.2), Holanda (art. 19 e 52) , Áustria (arts. 26 e 27), Polônia , P (arts. 19 e 20) ortugal , (art. 60) Eslovêni (arts. 32 e 40) a , Eslová(arts. 6, 99 e 99a) quia , Fin (arts. 9a e 14) lândia , S (arts. 25, 33 e 85) uécia , den (art. 41) tre outras. (arts. 7 e 41)

4 - É intere (arts. 24 e 25) ssante, nest (art. 11) e ponto, (art. 1) lembrar a advertência feita por Eliphas Levi, que assevera: "Querer o bem com violência é querer o mal..." A Chave dos Grandes Mistérios. Trad. Madelen de Merkouloff. São Paulo: Editora Três, s/d. p. 164).



* Felipe Augusto Fonseca Vianna é Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas; Bacharelando em Administração de Empresas pela Universidade Federal do Amazonas; Pós-Graduando em Direito e Processo Penal pela Universidade Federal do Amazonas; Pós-Graduando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Advogado Sócio do Escritório Jurídico Fonseca, Melo & Vianna Advocacia; Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais -IBCCRIM.



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